quarta-feira, 13 de outubro de 2010

QUANDO UM HOMEM MORDE UM CÃO

Manuel António Pina denuncia na edição de ontem (10.10.10) do JN o comportamento de uma advogada que terá chegado com uma hora e meia de atraso a uma diligência judicial no 3º Juízo Criminal do Porto.
1 - Não cultivo, como bastonário e como cidadão, o mito de que os Advogados estão acima do comum dos cidadãos. Somos homens e mulheres (como quaisquer outros) que exercemos uma profissão privada mas imprescindível ao aperfeiçoamento do estado de direito e à defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos. Temos a nosso cargo o patrocínio dos direitos e dos interesses legítimos das pessoas e das empresas, quer nos seus conflitos entre si, quer nos seus litígios com o poderes públicos. A Constituição da República Portuguesa qualifica o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça e isso confere aos advogados portugueses especiais responsabilidades perante o estado de direito e a sociedade democrática.
Infelizmente, temos de admitir que nem todos aqueles que, nos últimos vinte ou vinte e cinco anos, se inscreveram na Ordem dos Advogados reúnem todos os requisitos para o bom exercício da advocacia.
A massificação da profissão, decorrente sobretudo da mercantilização da formação ministrada pela OA e da degradação do ensino do direito em Portugal, conduziu a algumas degenerescências que eu próprio tenho denunciado e combatido. Quero restaurar a dignidade desta profissão e fazer com que ela volte a ser respeitada, não só nos meios judiciários, mas também na sociedade em geral.
Os órgãos disciplinares da OA já expulsaram vários advogados, suspenderam outros e têm punido muitos mais por comportamentos violadores das regras éticas e deontológicas que regulam a nossa profissão. Há, inclusivamente, advogados presos e outros fugidos à prisão. Não somos diferentes dos outros e temos as grandezas e misérias próprias dos seres humanos. Outros consideram-se (e agem como) divindades. Nós não.
Mas, como costumo dizer
, ainda não conheci nenhum advogado criminoso; conheci, isso sim, alguns criminosos que conseguiram tornar-se advogados. E isso porque, infelizmente, tem sido muito fácil a inscrição na OA. As principais preocupações da OA, nas últimas décadas, têm sido de natureza economicista. E a situação só ainda não se agravou para níveis terceiromundistas, porque a actual direcção da Ordem e eu próprio temos estado a travar um combate terrivelmente desigual para alterar esse estado de coisas, nomeadamente, instituindo rigorosos mecanismos de controlo no acesso à advocacia.
Queremos que a sociedade confie em nós, mas, sobretudo, queremos merecer essa confiança, não só pelas nossas aptidões técnico-profissionais, mas principalmente pelas nossas qualificações éticas e deontológicas. Este é o grande desafio da OA e da advocacia portuguesa nos tempos actuais.
2 - Em mais de 25 anos de actividade nos tribunais nunca assisti a um caso como o que aqui foi narrado ontem. Assisti, isso sim (e muitas vezes), ao inverso, ou seja, a magistrados que por vezes se atrasam horas e não são capazes de esperar 15 ou 20 minutos por um advogado ou pelo seu cliente. Assisti a decisões de magistrados que nomeiam defensores ad hoc para substituírem advogados legitimamente constituídos ou que iniciam julgamentos sem a presença de todas as partes ou dos respectivos mandatários. Vi juízes marcarem mais de dez julgamentos para a mesma hora, obrigando dezenas de pessoas a esperarem pela sua vez.
A regra nos nossos tribunais é a obrigatoriedade de os advogados cumprirem (sob severas cominações) os apertadíssimos prazos processuais que são impostos por lei ou pelos magistrados aos seus constituintes, enquanto os próprios magistrados gozam de total permissividade em relação aos prazos que a lei lhes impõe, demorando, por vezes, anos a praticar actos que o deveriam ser em alguns dias.
A regra nos nossos tribunais é a de que as partes têm menos de um mês para interpor um recurso, mas os magistrados, por vezes, demoram anos para os decidir (eu estou à espera da decisão de um recurso interposto há quase três anos). E se as partes reagirem contra esses atrasos, a decisão é-lhes, inexoravelmente, desfavorável.
Por isso, considero absolutamente insólito e até inverosímil o caso em causa. Nenhum advogado se atrasaria tanto tempo, desde logo, porque todos sabemos que nenhum juiz esperaria tanto tempo por ele.
Mas, mesmo que tudo isso fosse verdade, mesmo assim, seria de lamentar que o narrador revele mais interesse na pequena mordidela que um homem deu num cão e não nas dentadas dilacerantes que esse mesmo cão tem dado nesse mesmo homem.