quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O processo de Bolonha e o exame de acesso à OA

A Ordem dos Advogados instituiu um exame obrigatório para os licenciados em direito que queiram aceder ao estágio para a advocacia. A medida foi tomada em meados de 2009 para ser aplicada nos cursos de estágio que se iniciassem em 2010. Trata-se de uma iniciativa em tudo semelhante à que existe no Centro de Estudos Judiciários (que forma os juízes e os procuradores) e que o próprio estado tem vindo a adoptar em outros sectores.
A massificação dos licenciados em direito, devida sobretudo ao facilitismo adoptado como regra pelas universidades públicas e privadas, levou a uma situação em que a sociedade já não pode absorver os milhares de licenciados que todos os anos são «lançados no mercado». Sobretudo depois da entrada em vigor do Processo de Bolonha, em que as universidades decidiram reduzir os cursos de direito de cinco para três ou quatro anos, a fim de resolver problemas de financiamento. A sociedade portuguesa ficou saturada de licenciados em direito, para os quais, obviamente, não há saídas profissionais compatíveis.
Este processo de degradação do ensino do direito iniciou-se há cerca de 25/30 anos, com a proliferação de universidades privadas. De repente, em vez das três escolas de direito então existentes (Universidades de Coimbra, Clássica de Lisboa e Católica), surgiram universidades privadas como cogumelos. Os pólos dessas universidades chegaram a atingir cerca de três dezenas, espalhados por todo o país. Foi um negócio de milhões em que se explorou inescrupulosamente as esperanças e as ilusões dos jovens, prometendo-lhes saídas profissionais que já então era consabido não existirem na sociedade portuguesa.
O processo era simples: arrendava-se uma moradia ou até um apartamento, faziam-se umas obras, «aluga-se» (a bom preço) o nome de um professor prestigiado de uma universidade pública, contratavam-se uns jovens assistentes (de preferência familiares ou amigos dos donos do negócio) e aí estava um curso de direito a anunciar-se nos órgãos de informação através de publicidade comercial ou de notícias devidamente preparadas por agências de comunicação.
Hoje, há em Portugal, milhares e milhares de licenciados em direito que concorrem desesperadamente entre si por uma saída profissional que só existe para uma percentagem muito reduzida. Perante o elevadíssimo número de licenciados e, sobretudo perante a degradação generalizada do ensino do direito, são cada vez maiores as exigências na escolha dos candidatos a um emprego ou a uma profissão. É que é preciso averiguar os reais conhecimentos dos licenciados, pois hoje ninguém reprova nas universidades portuguesas. Aquela que o fizesse rapidamente ficaria sem alunos, já que estes naturalmente procurariam as universidades em que não corressem esse risco. É a lei do mercado, neste caso a funcionar ao contrário, pois em vez de melhorar o produto final (o ensino do direito) degradou-o. Salvo honrosas e muito poucas excepções, um curso de direito obtém-se, hoje, mediante dois requisitos: dinheiro para pagar as elevadíssimas propinas ou prestações mensais e paciência para esperar três ou quatro anos.
Vivemos num tempo em que os diplomas já não valem nada. As universidades perderam a sua credibilidade, limitando-se a vender graus académicos (licenciaturas, mestrados e doutoramentos), por vezes ao desbarato. A sociedade está cheia de diplomados em que poucos confiam. Por isso cada vez mais é preciso testar os conhecimentos reais desses diplomados.
A Ordem dos Advogados não poderia deixar de o fazer também. Mas essa decisão suscitou um conjunto de reacções internas e externas, pois parece que todos querem entrar livremente na Ordem dos Advogados. Primeiro, porque – dizem – a Advocacia é uma profissão liberal e, como tal, todos os licenciados devem aceder a ela, pois é o próprio Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA) que o permite. Depois, porque a OA estaria a levantar obstáculos ilegais ao direito de escolher a profissão de Advogado. Desmontemos, então, essas falácias.
Alguns fariseus muito solidários com os novos licenciados criticam a OA por não ter promovido a alteração do EOA no sentido de só serem admitidos os graduados com mestrado. Ou seja, a «solidariedade» deles vai ao ponto de querer que os licenciados nem com um exame possam entrar na Ordem. Além disso, alguns desses fariseus foram os que mais se pronunciaram contra a proposta de alteração do EOA apresentada há cerca de um ano e que resolvia a questão de forma equilibrada.
Há, de facto, uma norma no EOA (artigo 187º) que exige a licenciatura em direito aos que pretendem inscrever-se na OA como advogados estagiários. Simplesmente, quando essa norma foi redigida e publicada, o curso de direito durava cinco anos e não três e quatro como agora acontece. Portanto, invocar essa norma para obrigar a OA a inscrever licenciados com três e quatro anos, é tentar aplicá-la mecanicisticamente a uma realidade diferente daquela a que se destinava quando essa norma foi criada. A realidade hoje existente nem sequer podia ser prevista pelo legislador do EOA.
Aliás, houve tempo em que, no ensino do direito, o grau académico correspondente à frequência de três ou quatro anos era o bacharelato e não a licenciatura. E nunca o EOA admitiu que os bacharéis pudessem fazer estágio na Ordem dos Advogados. Ora, de acordo com o artigo 9º do Código Civil, a interpretação da lei não deve cingir-se à sua letra, mas sim reconstituir, a partir do texto legal, o pensamento do legislador, tendo sobretudo em conta as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. Ou seja, a lei nunca deve ser aplicada de forma literal e mecanicista.
Por outro lado, diz a norma do artigo 184º, nº 2 do EOA que o acesso ao estágio se faz nos termos dos regulamentos aprovados em conselho geral. Foi, pois, com base nesta norma que o actual Conselho Geral da OA elaborou um regulamento nos termos do qual o acesso ao estágio dos licenciados pós-Bolonha se faz através de um exame nacional que só admita os que mostrarem possuir os conhecimentos adequados. Nem todos os licenciados estão em condições de receber formação profissional de Advogado.

Por outro lado, os actuais licenciados em direito nem sequer com um exame são admitidos no CEJ. Mas para a OA, então já todos deveriam entrar mesmo sem exame. Saliente-se que a maioria dos que pretendem entrar automaticamente na OA já foi recusada noutros locais (CEJ, notariado, conservadores, carreira diplomática, administração hospitalar, etc.), onde, aí sim, lhes foi negado o direito de escolher a profissão. Para esses a Advocacia não é uma escolha, mas a única saída que lhes resta, apenas porque a OA se tem demitido de exercer adequadamente a sua função reguladora. Seguramente que a maioria deles teria escolhido a profissão de magistrado, de professor universitário, de notário, de conservador ou outra.
Sublinhe-se, aliás, que foi o estado que instituiu a reforma de Bolonha, que reduziu os cursos de direito para três ou quatro anos de formação académica. Mas, a primeira coisa que o próprio estado fez, logo a seguir, foi impedir esses licenciados de acederem ao CEJ, pois nem com um exame lá entram. Ou seja, os licenciados em direito que não podem ser magistrados, querem todos ser Advogados e entrar na OA sem um exame.
Se o ensino e a avaliação feitos pelas universidades portuguesas tivessem assim tanta credibilidade, então o CEJ não deveria escolher os futuros auditores de justiça através de um exame de admissão, mas sim admiti-los por ordem decrescente das respectivas médias de licenciatura até atingir o número da candidatos que em cada ano pretendesse. Mas o próprio estado sabe que os diplomas e as médias não merecem hoje qualquer confiança de ninguém, nem do próprio estado.
Ora, o actual Conselho Geral da OA entendeu que, em vez de excluir todos os licenciados como fez o CEJ, deveria dar uma oportunidade aos que demonstrassem possuir conhecimentos suficientes para receber a formação profissional necessária ao exercício da advocacia. De facto, pode haver licenciados que já tenham adquirido conhecimentos suficientes para poderem receber a formação profissional necessária ao exercício da advocacia e não possuam recursos económicos para obter o mestrado. Esses não devem ser excluídos se forem bons, mas devem mostrar que o são. O que a Ordem não pode é ser o vazadouro para onde as universidades atiram os milhares e milhares de licenciados, sobretudo aqueles que são recusados por outras entidades, incluindo pelo próprio estado.
Impor à OA a obrigação de formar Advogados com um grau académico inferior ao dos magistrados equivaleria à institucionalização de uma inferioridade funcional da Advocacia perante as magistraturas, que iria degradar ainda mais a justiça e manchar irreversivelmente a dignidade da advocacia portuguesa e do próprio patrocínio forense enquanto elemento essencial à administração da justiça. E isso a OA não aceitará.
Sublinhe-se, finalmente, que o estado impede – e bem – a massificação de certas profissões liberais, como a de taxista, devido ao interesse público inerente a essa meio de transporte privado. Por maioria de razão se deverá combater a massificação da Advocacia, cujo elevado interesse público está, aliás, bem expresso na Constituição (artigo 208º).


Marinho e Pinto
Bastonário da Ordem dos Advogados
(Em Advocatus)