segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O «defensor» público

A proposta de revisão constitucional apresentada recentemente pelo Bloco de Esquerda propõe a criação da figura do defensor público para patrocinar em processo penal os arguidos que não constituam advogado. Segundo esse projecto, os «agentes» (o termo é do BE) do defensor público estariam «subordinados a uma hierarquia» e gozariam de um estatuto próprio.
Essa proposta do BE revela uma profunda ignorância sobre a Justiça portuguesa e faz temer um enfeudamento desse partido aos interesses da corporação judicial. Em Portugal, quem tem defendido o defensor público é a parte das magistraturas que convive mal com uma advocacia forte, independente e interventiva.
Ao propor a criação de um Ministério Público ao contrário (um MP de defensores), o BE ignora o impacto que tal iria acarretar em termos de aumento do peso do Estado e da despesa pública. Esses milhares de novos funcionários públicos teriam de ter carreiras e hierarquias próprias, órgãos disciplinares e de inspecção próprios, instalações próprias, bem como quadros de pessoal auxiliar próprios, tudo aumentando ainda mais a obesidade já mórbida do Estado português. Essa espécie de Ministério público de pernas para o ar iria, obviamente, funcionar com todos os vícios daquele que, aparentemente, anda com os pés no chão.
Mas, pior do que tudo isso, ao subordinar o defensor público a uma hierarquia, o BE revela desconhecer a natureza do patrocínio judiciário. É uma pena que esse partido não tenha entre os seus militantes ninguém que explique à sua Direcção que um verdadeiro defensor tem de ser totalmente independente e não pode estar sujeito a nenhuma hierarquia; que um verdadeiro defensor tem de ter a confiança dos defendidos e que o seu único compromisso tem de ser com os cidadãos que representa e não com um qualquer patrão; que a única vinculação legal e deontologicamente admissível de um defensor é com os direitos das pessoas; enfim, que um verdadeiro defensor só pode ser um advogado e não um funcionário.
Por outro lado, o que a proposta do BE acabaria por instituir seria um modelo judiciário de matriz totalitária, pois o Estado passaria então a fornecer tudo - um juiz para julgar, um procurador para acusar e um funcionário para defender. A pescadinha meteria, finalmente, o rabo na boca.
Compreende-se que esse modelo totalitário seja do agrado de quem tem um visão estatizante da vida social e da própria cidadania. Mas ele carrega consigo uma discriminação dos cidadãos em função da condição social e económica. Quem tivesse dinheiro contrataria um advogado, quem não tivesse seria defendido por um funcionário que ganharia o mesmo ao fim mês, quer trabalhasse muito quer não trabalhasse nada. A defesa dos cidadãos mais pobres passaria, então, a ser feita não em nome e no interesse do patrocinado, mas antes em nome de um putativo interesse público que, obviamente, seria definido em cada momento pelo próprio funcionário defensor em função dos seus próprios interesses.
Refira-se que em nenhum país da Europa existe um sistema igual ao que é preconizado pelo BE e que em Portugal só os sectores mais retrógrados e decadentes das magistraturas têm defendido essa figura. E compreende-se bem por que o fazem.
Em vez de um advogado independente, com a confiança do cidadão patrocinado e empenhado na defesa dos seus direitos e interesses legítimos, teríamos (mais) um funcionário entediado, a cumprir penosamente uma tarefa que lhe era imposta e sempre com a esperança de que ela chegasse rapidamente ao fim, tentando não perder tempo a ouvir testemunhas ou a produzir outras provas. As contestações seriam tabelares e os recursos, porque são uma grande chatice para quem os faz e para quem tem de os decidir, diminuiriam acentuadamente. Os interesses desse defensor funcionário coincidiriam com os interesses do juiz funcionário e do procurador funcionário. Todos teriam a mesma pressa para sair mais cedo dos tribunais, todos teriam os mesmos motivos para chegar mais tarde e, sobretudo, todos estariam sempre muito unidos entre si, pois teriam sempre as mesmas reivindicações perante o mesmo patrão.
Além disso, o novo agente público teria de ter as mesmas regalias, dignidade funcional e privilégios que os actuais magistrados do MP, nomeadamente ao nível da carreira e das remunerações, pois não faria sentido que o Estado reservasse para os acusadores (públicos) uma dignidade funcional e remuneratória diferente da que concederia aos defensores (públicos).
Talvez em breve se saiba quem «vendeu» um produto tão degradado ao BE.